O Uber é a cara do capitalismo contemporâneo: socializa o risco e privatiza o lucro, puxando salários para baixo e driblando regulações do Estado
Devo começar este artigo deixando claro ao leitor que meus conhecimentos de economia se resumem a "comprou por 10, vendeu por 5, ficou com 5", e nem calcular os impostos sobre a venda eu sei. Com esse detalhe esclarecido, vou explicar por que sou contra o Uber –ou qualquer outro desses modernos serviços de transporte compartilhado.
O Uber está praticamente livre de intervenções do Estado e entregue às leis de mercado, idolatradas por tantos e beatificadas por estarem à disposição do suposto balanço natural dos ventos que regulam oferta e procura sem interferência.
Isso significa dizer que se numa sexta-feira à tarde qualquer o céu desabar sobre nossas cabeças em São Paulo ou qualquer outra megalópole, e muitas pessoas, precisando se locomover em segurança, optarem por um automóvel em vez de ônibus ou metrô, a procura por carros de transporte compartilhado, sejam táxis ou Uber, aumentará.
Nessa hora, embalado pelas ondas da liberdade da oferta e da procura de um mercado não regulado pelo governo, o Uber subirá o preço da tarifa. Quem, em um cenário como esse, poderá andar de Uber? Os que têm mais dinheiro.
Já em relação aos táxis, todo mundo, seja mais ou menos endinheirado, terá a mesma chance em casos tempestade, ciclone ou tufões porque a tarifa é uma só, regulada pelo governo, que também regula a segurança do carro –e isso inclui a segurança do e para o usuário–, além dos direitos do motorista.
Esse é o livre ritmo das ondas do mercado sem intervenção federal: ele beneficia os mais ricos. Em relação ao trabalhador, a situação não é menos estranha. Sem regulação, um funcionário de transporte compartilhado –chamado de "sócio" pelo Uber– fica totalmente desprotegido das leis trabalhistas.
Como "sócio" ele tem que investir em carro, seguro, combustível e manutenção do automóvel, ganhando uma comissão que muda ao prazer da gerência e que, segundo testemunho de motoristas, baixa corriqueiramente. Diante disso, o tal sócio se vê abandonado.
Motoristas do Uber já pararam e protestaram algumas vezes em Los Angeles, São Francisco, Seattle e Londres. O que eles pedem? Salário decente, respeito da empresa e melhor comunicação com a gerência.
Basta dar um Google para encontrar muitas histórias de motoristas na Califórnia que dizem precisar trabalhar 17 horas por dia para ganhar o mínimo. Como já investiram no carro para serem "sócios" do negócio, não podem abrir mão do emprego porque têm dívidas a pagar.
No Reino Unido, motoristas do Uber entraram com ação contra a empresa por maus-tratos, e na Filadélfia uma repórter do jornal "Philadelphia Citypaper" foi trabalhar para o Uber para descobrir se um sócio ganhava os U$ 90 mil por ano (quase R$ 320 mil) que a empresa dizia ser possível de ganhar. Ela concluiu que faria esse montante de dinheiro se trabalhasse 27 horas por dia durante 365 dias seguidos.
O Uber tem a cara do capitalismo contemporâneo, ou da celebrada "economia compartilhada", essa que socializa o risco e privatiza o lucro eliminando proteções trabalhistas, puxando salários para baixo e driblando regulações federais.
MILLY LACOMBE, 48, escritora, é autora de cinco livros, entre eles "Tudo É Só Isso" (ed. Benvirá). É colunista da revista "Tpm" e assina com Marcelo Bernardes o blog Baixo Manhattan no site da Folha
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